Escrito...

A minha literatura diz e não diz: diz porque, no momento de aspersão inspiradora, (quase) se nota uma fisgada de incomodidade, uma crítica sutil, para que a poesia floresça... Não diz porque as inquietações são dialéticas - parte de cada leitor -, o que se vive, sonha, pensa e sente...

terça-feira, 28 de julho de 2009

O inventor


Às crianças:
Igor e Vanessa, Jessé Jr. e Jéssica, Breno e Bruno


No “vendaval” da tarde, o menininho brincava com as folhas caídas das mangueiras de seu quintal. As folhas rodopiavam, desenhando poesia no ar.
Depois daquele momento, ele correu para os braços de sua avó e, com uma certa curiosidade de uns 5 pontos na escala sísmica, perguntou:
_ Vó, o que faz a natureza ter vento, então?
E ela, no seu sempre sorriso bonachão, responde:
_ Um imenso ventilador celeste!
O menininho desenhou o aparelho na sua imaginação. Ficou um minutinho pensativo e, com o semblante em interrogação, voltou-se para a avó novamente e...
_ Deus, meu filho, Deus! – disse ela tranquila antes da nova pergunta.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Um ponta-pedrense sonhador

Sentou-se à porta da frente. Sentiu o frio do chão de barro batido e olhou a mangueira do vizinho, frondosa e carregada. Abriu o livro (muito indicado pelo professor para o trabalho escolar) e começou a ler. Parou...
               Ficou pensativo. Imaginava os "campos queimados"; comparava-os com os "prados da Holanda", fechados de flores coloridas. Tinha consciência de que eram campos diferentes, e em sua imaginação, antagônicos. "Sim, antagônicos", bem como o professor explicou ao falar das personagens de um romance de que já não se lembrava mais. Porém, sonhava. O peito estufou-se de alegria, gozava de um pouco de satisfação.
               Mas, não conhecia Holanda e nem, ao menos, Cachoeira. Sentia-se pequeno. Era pequeno.
               Campo, ele conhece o de futebol, maior divertimento da comunidade. Quase toda tarde, reúnem-se os amigos e parentes para "aquele bate bola". As meninas na torcida gritam eufóricas: "Vai, Tirico. Não deixa esse perna-de-pau passar..." E arrumava-se a farra.
               Conhece também o campo de pouso da comunidade no qual aterrissavam pequenos aviões (teco-tecos, como são conhecidos), o mais longo que até o momento ele conseguira conceber. Cerrado por falta de zelo e de uso ("mais de uso"); o campo de pouso nunca mais viveu a folia que era quando um teco-teco baixava para uma visita ou realização de algum trabalho. Nenhuma pessoa importante, nenhum político. E candidato agora, em época de eleições, vem de voadeira.
               Ah! Sim, estava esquecendo-se da emoção que sentia ao ver um avião manobrar sobre as casas, alvoroçando o lugar. Um amigo (o Balado), doido na carreira, varava a cozinha de dona Marica, berrando "Beco, Beco! Avião, vamo vê", e saíam acompanhando o barulho que o "bicho" fazia. Beco deixava a monotonia dos dias em que nada acontecia de diferente. A algazarra estava armada.
               A animação contagiava até os mais velhos.
               Dona Marica, preocupada, atirava o ralo por cima da mandioca e, atrás dos garotos, esbravejava "Olhe, seus muleque, cuidado com a palheta!", até que parava e, de volta, falava para o povo das janelas vizinhas sobre a preocupação que tinha quando um "treco" daqueles descia.
               Tio Zique (que Deus o tenha) tirava do bolso o abade e o tabaco picado. Fumava quatro vezes ao dia: de madrugada, de manhã, de tarde e de noite. Cada período do dia, ele respeitava e em homenagem tragava um charuto desses. Mas, abria exceção em tempo de agitação e as baforadas ganhavam outra significação menos formal: um não se sabe o quê de prazer e contentamento. Então saía a palavrear com toda gente.
               Seu Mulato parava o dominó, levantando sempre as calças, erguia-se do banco de tora de "burajuba" e cogitava sobre o empenho do senhor Tomás: "Quem sabe agora o vereadô trouxe resposta do motô".
               Rita, a irmã velha, surgia do fundo do quintal e plantava-se no caminho pelo qual os visitantes certamente passariam para oferecer-lhes coco verde ou ingá-de-metro, e assim poder arrumar o conto do querosene que faltava na lamparina.
               Beco lembrava de tudo isso. Sentia uma espécie de desejo. Desejo de sair, conhecer, aprender e crescer. Desejo de conhecer campos com flores, campos queimados, e aeroportos dos quais pessoas vindas de Belém sempre falavam. E ele nunca foi a Belém.
               A baía de Marajó, ele contemplava da praia das Flechas ou da praia de Santa Maria; a de Guajará, ele só ouvia falar. Nunca, em bote, saiu para pescar. Todavia, já "estava crescidinho e iria provar dessa aventura". Teria de acontecer assim.
               Coisas de cidade, só vê realmente na sede do município; de outra forma, apenas nos livros por meio de gravuras e fotografias. Não se queixava de viver no "sítio", mas agora sentia a necessidade das vantagens oferecidas pela cidade.
               A mãe vai receber a pensão mensal e Beco vai junto. Lamenta-se da estada que é breve, pois "a canoa do Jatoba não espera". Beco considera Ponta de Pedras. Gostaria é de mais tempo... Lá, ele pisa em praça calçada, de onde todo canto sai uma rua nova. Sim, "rua nova e de verdade!" O coreto é paixão primeira (de quando em quando até sonha com ele): um dia haveria de entrar lá e "olhar o mundo", declamaria uma poesia ("para isso também servem os coretos" - ouvira certa vez do professor), ou sentado no para-peito, contemplaria o movimento da vida simplesmente...
               O Cristo, que fica na praça da "Barraca da Santa", atrás da "Casa Cabocla", um dia, ajoelhar-se-ia diante dele do jeito que aprendera fazer com a Santa Ana; leria os escritos das placas de pedras do obelisco da Praça Magalhães Barata (lera o nome ao passar com pressa por lá), onde se localiza o Grupo Escolar; iria à Telepará, tomaria o telefone e com responsabilidade falaria ao irmão que trabalha em outra cidade; assistiria a uma missa na Catedral e orando, pediria a Deus para que pudesse voltar no Círio; embarcaria no "Raimundo Malato" e finalmente desbravaria as baías.
               Depois (talvez) conheceria Cachoeira, visitaria o museu e cavalgaria pelos campos de Dalcídio, tão miseráveis, mas cheios de vida; e, cada vez mais longe, viajaria para a Holanda e colheria lá dos prados um maço de "flores perfumadas"; pilotaria um grande navio e dele presenciaria um bonito pôr-do-sol.
               Tudo ele se imaginava fazendo e em tudo derramava um pouco da essência que os sonhos possuem.
               Lembrou-se do último livro que lera: fino e com figuras; divertiu-se com "Raquel" e suas "vontades", gostou muito do "Galo Rei" (que trocou o nome por Afonso); maravilhou-se com a "Guarda-chuva" e sua linguagem comprida, e com todo o mistério que "A bolsa amarela" continha.
               Nisso, os minutos voaram... Quase deixou cair o livro de suas mãos. Voltou a folheá-lo. Encontrou a parte em que tinha parado na leitura. No entanto, já era noite. Dona Marica chama-o para jantar. Não chegou a terminar a primeira parte.

(1º lugar no concurso literário de Ponta de Pedras)

Auto-crítica


...Aí encontrei num caderno dos tempos do 1º grau um pequeníssimo poema meu; umas oito ou dez linhas. Falava de uma certa moça que se chamava Bonita e que pedia ao mar que lhe trouxesse seu amor (“Ah, mar...”).

Li, reli. Sei lá... Lembrou-me de Ismália quando enlouqueceu. Só que uma Ismália sem asas, só de corpo; uma Ismália que não subiu ao céu..., nem quis nadar.

Conto de língua


O pequeno Aparecido, depois de ler o informativo do conselho escolar de sua escola, foi visitar o professor Zílber. Ao ser recebido, o menino foi logo perguntando:

_Professor, ratificar tem alguma coisa a ver com ratos, é?

O professor fá-lo entrar e, com sorriso aberto, gostosamente foi explicando ao seu aluno:

_Não, Aparecido. Ratificar significa apenas “aprovar”, “validar” – dizia o professor, enquanto servia café com torradas ao atento aluno.

O guri contou que lera o informativo e, como não tinha se deparado com essa palavra antes...

_Bem, agora tem sentido a passagem do artigo “Encontro estudantil” – disse o leitorzinho sorridente, já com as torradas na mão – quer dizer que todos os presentes no encontro aprovaram o pedido de ajuda na reforma da escola proposto pelo presidente do conselho.

_Exatamente. Por falar em artigo, na parte do esporte temos outra palavrinha que não é tão aparecida assim – falou o mestre, pondo a mão na cabeça do aluno – é a palavra retificando, do verbo retificar que significa “consertar”, “corrigir”, “tornar reto”. Esse verbo é parônimo de ratificar.

_Parô o quê? – indagou o aprendiz.

_Quero dizer que essas duas palavras são muito parecidas, mas seus significados são diferentes.

_Ah, sim! “Ratificar”, que é “aprovar” e “retificar”, que é “corrigir”!

_Isso. Além dessas, há várias outras como “descriminar” e “discriminar”, “discrição” e “descrição”, “migrar”, “emigrar” e “imigrar”, e...

_Essas palavras dão trabalho para decorar, professor!

_Que nada – falou o professor, que servia mais uma vez o garoto com café – É só prestar atenção nos contextos em que aparecem e passar a usá-las também, aumentando assim o seu vocabulário.

_Gostei, professor! Acho que depois de ler o próximo número do informativo da escola, vou aparecer aqui de novo.

_Você pode conversar comigo na escola...

_E perder esse cafezinho com torradas?!...


(Publicado no jornalzinho "O Letivo" da Escola de Santana do Arari)



Um poeta de Ponta (1ª parte)


Acabara de ler o regulamento. Pela primeira vez admitia-se inscrever poemas de forma fixa. Todo poeta de verdade deveria ser capaz de compor um soneto.

Mas sobre o que escreveria este ano?

Pegou um bloco de papel, uma caneta e foi ao trapiche municipal. A tarde estava mole e as ruas da cidade alimentavam uma lassidão nas casas.

Epa! O trapiche está sendo reconstruído. Ah, o velho trapiche que nas madrugadas desertas mais parecia uma cobra-grande ressonando na mansidão das águas escuras do Marajó-açu... Desviou o olhar. Avistou as mangueiras em frente à escola Aureliana; dirigiu-se para lá. Ao pé de uma imponente árvore, buscava a inspiração de que precisava. Nada, não saía nada.

Resolveu ir para a praça Antônio Malato. Ficou contemplando por algum momento as ruínas da antiga Prefeitura. Talvez devesse rascunhar um poema sobre a grandeza desse outrora Palácio Municipal. Outros já o fizeram em verso e prosa?! Já o têm como símbolo, hoje, de um tempo político devassador, hostil? Foi a tomada da Bastilha, a nossa Revolução Francesa!

Preferiu não. Melhor buscar outro assunto, outro fato.

Caminhou em direção ao cemitério. Um outro poeta já falou de seu mistério.

Buscava, então, algo de “altaneiro”? Queria a majestade de um município que reina “sob a imensidão do céu marajoara” (mencionando Sandoval Teixeira, músico que agora está sendo lembrado pela Associação Musical Antônio Malato)? E falando em AMAM, maravilha sentir os frutos dessa importantíssima instituição muito bem representada por seus músicos, em especial, o professor regente Marcelo Tavares; por meio de seu trabalho, ela ganha notoriedade no Pará e no Brasil. Essa entidade sim, admitiu mentalmente nosso poeta, tem merecimento de um poema em sua homenagem. Mas o quê? Nada, não é desta vez.

Continuou a vagar pela cidade. As ruas agora já apresentam algum movimento.

Suplicou às musas do Parnaso, em frente ao campo de futebol: fazer uma obra em que figurem Marcenaria, Acadêmicos, Pedregulho e outros clubes do município...; seria uma boa idéia? Pouco se interessou pelos jogos na região; para ele, só existiam Paysandu e Remo, e a Seleção Brasileira.

O passeio já estava alongando. Todavia, caminhar parecia ser a melhor saída para conseguir o mais belo poema e poder assim concorrer.

Lembrou-se de nosso açaí, de nosso camarão, e arriscou uma quadra:

Ah, cheiro da brasa e cheiro do tucupi

Estão assando camarão lá no quintal

Vejo os espetos da tala de jupati

-Movimentos típicos perto do jirau

Nada mau, achou. Mas faltava o açaí; faltava a gente cabocla. Tentou mais quatro versos:

Então me convida a dona Marianinha

Que sabe amassar o açaí no alguidar

E me aponta com a boca em bico a farinha

-Que bom uma comunidade visitar!

Gostou das rimas e do metro. Voltou a andar. Aproximara-se do Arapinã. Leu, releu as duas estrofes. Preciso melhorar. Vão me criticar por esses versos batidos e com pouca imaginação. Embolou o papel e enfiou no bolso.

Atravessou pela ponte. Das canoas atracadas ouviam-se as vassouradas que os tripulantes davam no fundo dos cascos das embarcações: era a faxina depois da viagem. Não quis parar. Pessoas o notavam agora. Prosseguiu nosso inconcusso poeta, rabiscando, andando.

No campo de aviação, imaginou o pouso suave de uma deusa que lhe traria a palavra exata, a colocação perfeita; o ritmo fluiria e quando percebesse, lá estaria o seu melhor poema, com sua mais sublime poesia.

Folhas de papel em branco acenavam ao vento. Tentou novamente:

Tem Praia Grande, Vila Nova e Mangabeira

Cajueiro, Cucuíra e Jagarajó

Vejo canoas e igarités lá na beira

E vejo o caboclo atolado no igapó


Ora, vejam só! Uma canção! Gonçalves Dias se importaria?

Não. Cento e vinte e oito anos merecem bem mais que só exaltação. Embolou essa folha também. Bolso!

Um poeta de Ponta (2ª parte)




Precisaria de um poema com crítica social, como aqueles que Castro Alves soube, com inflamação, declamar na denúncia da situação indigna dos negros. A poesia serve também para denunciar as mazelas da sociedade. E tentou:

Meninos da Matriz

da peteca e da bola

da mão indo ao nariz

a terra vai e cola


Meninos da manhã

que vendem unha e “chopp”


Esperem! Necessitava de versos com um mínimo de dez sílabas métricas; esses (não sei como conseguiu sem escandir) continham apenas seis. O tema era bom; ainda bem que o Conselho Tutelar já age nesse assunto socialmente vergonhoso, e há um programa do governo muito bom que tenta erradicar o trabalho infantil em nosso município. Esse poema seria só mais uma denúncia?!
A lembrança passeou agora pela ironia, às vezes sarcástica, de Matos Guerra e questionou, como ele fizera há séculos, sobre a honra, a verdade que poderia estar nos faltando. Lembrar-me-ão também como um “Boca do inferno”? Tentaria ser mais sutil, porém:

Ó cidadezinha filha da fruta

Da fruta que teus próprios filhos comem

Quais os homens que tomam a batuta

E nessa luta quantos te consomem?

Certamente Cazuza aprovaria, pensou. Mas nosso cauto poeta queria algo que encantasse a todos, que quem lesse pudesse dizer “Meu Deus, nunca vi lugar-comum tão poeticamente bem arquitetado!”; e pudesse suspirar singularmente satisfeito.

Sua mente teimou em rever os assuntos e as riquezas de nosso mundinho: dança folclórica, festa do boi-bumbá, enraizadas e muito bem alimentadas pelo professor Aristeu; encantamento de boto e de mãe-do-mato, sobre os quais os professores Edinelson, Cristina, Jorge e Ló já devem ter contado; a cerâmica insiste, resiste nas mãos do Anaías, do Carlos, do Assis e do Adelino; Enfim, as aflições humanas, a hipocrisia de alguns etc., tudo isso o nosso escritor maior - Dalcídio - magistralmente já se enveredou. Maravilhoso que hoje as artes em Ponta de Pedras ganham com o aumento do mecenato; cita-se, como exemplo, a dona Regina que está resgatando nosso teatro.

Nosso poeta voltou os olhos para o bloco novamente. Apelou para o trabalho árduo, forçando um poema a se desprender, sabe-se lá de onde; quis martelá-lo, limá-lo conforme fizeram alguns parnasianos, e o que conseguiu foi um escrito artificial e ornado.

Definitivamente, este ano não participaria do concurso de poesia da cidade. Desistiria?

Ah, o amor por sua terra era tamanho que não admitiria ter falhado na empreita de que tanto já havia se orgulhado.

O sol agora beijava as árvores lá na curva do estradão. Guardou o bloco e a caneta. O semblante mostrou uma expressão de alívio (pensava ele em uma outra oportunidade feliz?). E no retorno a sua casa, cantarolava algo de que não se dera conta que ele mesmo compusera... assim:

Amo-te tanto tanto, de um amar sem fim

E não julgo nunca terminar esse atrito

Que muito faz desse amor o infinito

Que o próprio amor que tenho e sinto por mim.

Seria uma força inconsciente que o impelia a não desistir? Ah, nosso poeta de Ponta estava destinado a isso, sim.
(1º lugar no concurso literário de Ponta de Pedras)

quinta-feira, 2 de julho de 2009

A salvação da velha

O motor parou novamente. Noite um tanto quanto límpida. Satiro não tinha sequer uma linha de graça no rosto; todas lhe eram caras, e só havia uma cara, séria. Serena como a noite? Quase singela.

O motor parou! O que deveria ser agora?

_Ar?

_Mururé.

Não estava de todo escura a noite, mas as árvores delineando o igarapé pareciam sombras contínuas acompanhando o bote. Essas sombras avançavam querendo os engolir? Engolir aquele casco podre cujo coração era doente. Doente que precisava levar a velha Cláudia que há dias vinha sofrendo de dores. Ela era a doente e a pequena embarcação sentia os males. O corpo da velha moído da prostração, dos emplastos, dos chás, agora ali na rede, mole e sobre o motor que fervia o ar, impregnando-o de óleo diesel e fumaça. Serzelina, aquela peste, filha da enferma, era a única a mover-se dentro da embarcaçãozinha. Por que houveram de me procurar, cismar logo comigo? Podiam pedir ao Zélio; ele tem uma canoa bem melhor, veloz.

Satiro era só impaciência por dentro e descontava aquele incômodo no motor. Culpa de Delma: “Vai, filho, a dona Cláudia está muito mal. Na cidade tem médico. Não lhe custa”. Mesmo que a família da enferma desse o combustível, custava muito a ele. Tinha avisado do estado da canoa. A velha não escaparia; chegaria morta lá. Antes essas sombras abrissem suas bocas e nos engolissem; perderia o casco velho, ficaria vivo, mas terminaria logo com a agonia dessa coitada. De quebra, morria Serzelina também. Não me acordariam essas tantas da noite para levar doente à cidade. Bem que tinha voadeira do posto, mas, porque pública, arrebentaram ela, trazendo mercadorias para o comércio das pragas, donas da chave.

A viagem demorava. A maré alta lavava os terrenos; os açaizais, limpos pelos terçados, pelos machados, mostravam seus olhos dentro da noite, abrindo-os quando o bote passava. As árvores cortadas, caídas, de bubuia, apodreceriam aos pés dos novos açaizeiros que viriam viçosos para o verão; os cachos encheriam os olhos dos donos e dos passantes. Por que aquele enfermeiro molenga de Santana não passava o machado na velha?

Satiro fazia rebujo com os pés para alcançar a hélice e remover as plantas que atravessaram o caminho. Só me faltava ter que mergulhar a essas.

Duas horas e quarenta de viagem e cinco imprevistas paradas: água no óleo, ar na bomba, cárter seco, rompimento da borracha do tanque d’água e agora lixo. Não era para ser ele! Olhava para a rede; a mulher definhava nela. Não sabia de seu mal. Ninguém sabia. Mas certamente morreria. Deixar sofrer era malvadeza. Era malvadeza, coitada. Até parece! Tinham que dar alívio. Talvez nem chegasse viva na cidade.

_O senhor tem lanterna?

_Não.

Havia sim uma lanterna, mas não estava com pilhas. Não adiantava dizer que tinha. Não diria mesmo?

_Candeeiro?

_Era só a poronga que caiu na água!

Estava se arriscando... Outro barco maior o acolheria numa curva. Não está tão escuro assim; desviariam. Mas se não desse tempo? E se a outra também estivesse no escuro?

O sopro do sete e meio, querendo funcionar, trazia a imagem do Arina tentando lhe vender um Tobatta. Motor antigo, dos bons. Por que não vendeu por mil e novecentos? Sendo de segunda. Não faria aquelas paradas se houvesse comprado o motor. Ou andasse prevenido! Mas quem contava que a velha Cláudia não morreria logo? E por que aquele canalha não trouxe ela, o Zélio; o barco dele é maior! E a voz de Arina ecoava dentro da cabeça de Satiro “é Tobatta, já sabe!”, fazendo chacota dele.

Com uns goles o sete e meio funciona.

_Já estamos a favor? - pergunta Serzelina, quase gritando.

_Já!

_Horas?- aponta ela para o braço.

_Duas!

Duas horas. Três de viagem agora; com cinco paradas! Droga desse sete e meio que não vale uma merda!

Satiro, no timão novamente, volta os olhos para o motor e para a rede da velha. O motor era que exprimia as dores dela. Verificava pela janelota a saída de água de refrigeração. As pequenas ondas do cortar do bote eram as veias dos igarapés que pulavam anunciando reprovação. Essa tensão o deixava de pressão alta. “Vai, filho”. Não negaria à sua Delma aquele pedido, nenhum desejo. Só a Delma mesmo!

_Tem água?

Satiro queria era mandá-la olhar para fora. Por acaso estamos voando, besta? Deveria dizer para ela parar de frescura. Água pra velha agora não faz diferença. Ela não pega no gole. Mas apontou um objeto:

_Ali no carote.

Satiro avistou as luzes da antena da companhia de telecomunicação acima da mata escura. Aquela paisagem o refletia. Estava diante de um imenso espelho. Seus olhos vermelhos acima da muralha de sua raiva. Vermelhos de sono e de gana.

_Na chegada, salta! Não espera ambulância!

Serzelina balançou a cabeça aceitando aquele conselho trespassado pela zoeira. Os berros de Satiro apenas desafinavam aquele desconcerto monótono dentro da noite.

Avistando a cidade, Satiro ficou imaginando o desembarque. Melhor na rampa. A água dormente do Marajó-açu cintilava com as luzes refletidas. Efeito de alguma varinha de condão? A velha receberia aquela magia ou eram prenúncios de velas desfechando aqueles ais?

Atracaram. Notaram a ambulância. Mas como? Compadre Aldo recebera a fonia e acordara o vereador. Mas não estava com defeito aquele aparelho?

A velha saindo da embarcaçãozinha era o vômito da sucuri que se enganou de presa. Podia ser as últimas golfadas daquele bote seu que também entregava os pontos.

Levaram a velha.

Pela manhã, o vereador trouxe o combustível. Comentou:

_O senhor, seu Satiro, ainda recebe uma medalha. Salvou a dona Cláudia. Mais um pouco e ela teria morrido. Palavra do médico.

“Mais um pouco”? Então por que esse desgraçado do motor não deu pane mais uma vez? Seria melhor para ela. “Recebe uma medalha”!

_Que bom!

E este um! Em vez de pensar em me dar uma bijuteria, nem para olhar para a embarcação que estava precisando de médico também. São todos uma corja! Quando precisam...

Satiro recebeu o óleo e desatracou. Com alguns goles, o motor fumegava a raiva de seu dono. Estava só, voltando para casa. Para sua Delma, com a tarefa cumprida. A lembrança do político prestativo lhe trazia algo de alívio agora. “Salvou dona Cláudia”. A frase servira de purgação daqueles seus pensamentos nada colaboradores. Pelo menos então me dessem o dia perdido! Mas a declaração do médico, do vereador nos ouvidos de Delma era o que o levaria à salvação.

(Publicado em "Um poeta de Ponta")

Quando encontrei Dalcídio

_Missunga, ó Missunga!

A voz atravessou o capoeiral e encontrou Missunga de espingarda em punho, ainda selada. Famaleal deixa, por um instante, as folhas moídas que farejava e agora late em direção ao céu. Missunga baixa a espingarda e flutua para fora do capoeiral; depois, para fora do livro, num clarão que aos poucos se dissipa.

_Missunga, deixa as cotias, meu amigo! Não há nenhuma mesmo.

Missunga, como mágica, se vê numa sala agora, em companhia do dono da voz que o convocara. Era novamente o Professor que o trazia para o mundo real, ou para o outro mundo, como preferia Missunga; pois para ele o mundo real era Paricatuba com sua gente, eram os rios com suas canoas, era a Vila com suas casas, eram os bichos e seres encantados daquele espaço nativo,... eram também suas lembranças da infância.

_Ainda enfadado, meu amigo Missunga?

_Precisava encontrar o meu criador; precisava ouvir dele o porquê desse meu ser, assim... – disse Missunga.

O filho do Coronel Coutinho, que teimava em não querer ser doutor, queria respostas que só o próprio Dalcídio poderia lhe dizer.

_As coisas são como são e às vezes são o que não parecem ser – filosofa o Professor – “Tudo é e não é, sendo”, dizia um mestre meu.

Enquanto Coronel Coutinho lá no casarão de Paricatuba também chama por Missunga e enquanto Famaleal fareja as tocas vazias e as folhas moídas do capoeiral, Missunga, fora do livro em que fora criado, tem um dedo de prosa com seu amigo Professor.

_Contar-lhe-ei – falou o Professor – como encontrei Dalcídio...

_Mas ele morreu há anos! – comenta Missunga.

_Morreu para quem pensa... – interpela o Professor. Tu que vieste de uma história que ele escreveu, deverias ser o primeiro a não acreditar nisso! Eu mesmo converso com Dalcídio quando falo contigo, com o Alfredo de “Chove...” ou quando fico brincando com Famaleal; eu daqui e vocês do mundo da ficção.

_Então me conte como encontrou Dalcídio – pede Missunga.

‘Fazia eu uma pesquisa escolar na biblioteca do município, digo, na ex-biblioteca... Sim, essa mesma que foi queimada. Fazia uma pesquisa..., não me pergunte sobre o quê, na memória só ficou daquele dia o fantástico encontro do qual estou falando; aproveitava a oportunidade para mexeriscar, digo, para mexericar alguns livros. Naquele início de anos 90, era leitor de razoável número de livros que conseguia emprestar (eu mesmo não possuía uma dezena). Encanava-me, digo, encantava-me com Lobato e Cecília Meireles; discutia com Bandeira e Machado de Assis; concordava, digo, com Drummond e com Pessoa acordava; a Jorge Amado e à Lygia Fagundes eu ainda não fora aposentado, digo, apresentado... Nunca me dei conta de que lia autores nascidos de cidades de lá ou de cá. Apegava-me ao ato de ler, de conhecer as obras, de viajar nos mundos possíveis e impossíveis de maravilhosas histórias, intrigantes poemas..., quando icei um livro de uma prateleira qualquer (hoje sei que não era uma qualquer!) e vi: “Benedicto Monteiro”, paraense! Opa, paraense...?! Isso mesmo. Uma sensação de orgulho-(a)parecença cor de mato-lá-do-mundo-fundo-do-quintal-de-casa, um sentimento de parenticidade, um quê de parente na cidade, um trato de aparente idade... abarcou-me a mente. Precisava agora saber se Ponta de Pedras também reinava entre as poucas cidades paraenses onde escritores, melhor, autores dos bons tivessem nascido. Guardava uma curiosidade, uma curiosa idade começou a aflorar naquela estante, digo, naquele instante. Mas sim; o livro tinha para mim, no mínimo, um nome de obscura significação; algo assim como minotauro e dinossauro... Minossauro! (seria um desses monstros pré-históricos com cabeça de gente?). A fantasia começava a se desenhar... Vagueando com os olhos para imagem minar, digo, para imaginar o absurdo contido naquele título, me deparei com outro montante de livros onde um deles se intitulava “Marajó”; com o indicador, movi a obra: “Dalcídio Jurandir”, li; mais um escritor de fora querendo me dizer como é o Marajó, pensei. Que nada! (seria com incidência, digo, coincidência?). Comecei pelo fim; “Dados bibliográficos: 1909 – nasce na Vila de Ponta de Pedras, Ilha do Marajó, Pará, no dia 10 de janeiro...”. Que alegria! Quem sabe está aposentado em alguma chácara no Marajó, com seus oitenta e poucos anos, vibrei. Mas o ano de “1979” lá dos “Dados bibliográficos” jogou no perau como fruta de chumbo aquele pensamento-querência: “Morre a 16 de junho no Rio de Janeiro”. No entanto, lavei, digo, levei o livro para ler. Foi então que a mágica aconteceu; Dalcídio ressuscitava, digo, suscitava como se nunca tivesse morrido à medida que eu avançava no mundarel de sua (des)conhecida literatura. Fiquei eufórico, não, maravilhado! Sim, maravilha foi aquele achado’.

_Foi assim, Missunga, que também te conheci, que também conheci todas as outras personagens dalcidianas.

_Ele vive então só para o Professor...? – pergunta Missunga.

_...e para todos aqueles que lêem as obras – interrompe o Professor. Dalcídio continuará vivo! Posso até vê-lo de quando em quando, a testa luzindo tanto quanto reluzem os óculos abaixo dela (seriam centelhas de brilhantessência de seu gênio criador?).

_Como posso encontrá-lo também?

_Encontra o mundo que está dentro de ti. Usa um pó, uma palavra mágica, um caroço de tucumã como o do Alfredo... Lê, lê a si próprio e tu o encontrarás.

Missunga parece entender e compreender.

_Já sei – diz ele – já sei, Professor. Vou encontrar Dalcídio!

E como que sabendo mesmo como, Missunga volta para o livro de onde saíra.

(Publicado em "Um poeta de Ponta" - 1º lugar no concurso do I Colóquio DJ, Ponta de Pedras-2004) - Copyright by Jonas Furtado

RECEPÇÃO DA OBRA Um poeta de Ponta

"O contista Jonas Furtado é aquele observador e criador no silêncio - [...]. (Que) ganhou força, segurança e orientação, a fim de lançar e de arriscar no mundo dos poetas." Gunter Karl Pressler

"(...) Esse universo nos dá uma sensação de leve poesia cotidiana, ..." Cristina Ribeiro

"... com um talento peculiar e um tanto quanto raro, (Jonas) apresenta para nós, apreciadores de literatura, este trabalho relevante para nossa região tão carente de livros e de autores da terra." Wanderson Cavalcante

"Artesão de personalidades ... Jonas demonstra ... (ser) no seu livro Um poeta de Ponta, herança histórico-cultural, artístico-literária." Angelina Rodrigues

"...poucos artistas marajoaras têm a sensibilidade de absorver a cultura pontapedrense..." Luciene Andrade

"É importante quando um escritor valoriza a sua terra e a sua gente." Ivonete Guedes

"Fantasia? Realidade? Uma mescla convidativa para o conhecimento do ser humano: um ser muitas vezes impossível. (...)" Estelita Oliveira

"(...) Fico orgulhosa de termos um escritor premiado da terra como o professor Jonas." Ester Alencar

"Beber da leitura dos contos e crônicas de Jonas não é difícil diante do enfoque contextual em que ele, como autor, mergulha. (...)" Edileuza dos Santos

"Ele diz que seus textos são simples, mas percebemos que para lermos muitos deles, no mínimo, se deva ser um leitor iniciado." Irineide Furtado

Nota da editora

Em textos deliciosos e instigantes, Jonas Furtado reúne, neste seu livro de estreia, crônicas e pequenos contos que retratam a vida cotidiana de uma cidade do interior da Amazônia, a aprazível Ponta de Pedras, no Marajó, por coincidência cidade natal de um dos mais festejados romancistas brasileiros: Dalcídio Jurandir.

Um poeta de Ponta é um livro para se ler por puro prazer. Jonas nos surpreende, a cada página, com um toque de alegria, de simplicidade e de revelações. Revelações em que já se enxerga com segurança a semente de um futuro grande autor.

Cejup

ISBN978-85-338-0489-0 (1ª edição - 2007)

Apoio: Aspelpp-DJ, AMAM (Associação Musical Antônio Malato), Prefeitura de Ponta de Pedras