Escrito...

A minha literatura diz e não diz: diz porque, no momento de aspersão inspiradora, (quase) se nota uma fisgada de incomodidade, uma crítica sutil, para que a poesia floresça... Não diz porque as inquietações são dialéticas - parte de cada leitor -, o que se vive, sonha, pensa e sente...

domingo, 6 de setembro de 2009

Minha infância

Foi um tempo quase desconhecido para mim, não fosse a curiosidade pelos mistérios do mundo a minha volta. Anos 70, começo dos 80. As lembranças me vêm agregadas à saudade; um desejo de reencontrar-me criança invade-me numa esperança de viver novamente aqueles dias fagueiros, de verdades e fantasias; preencher assim lacunas das quais minha memória deixou de se incumbir.
          Em minha Ponta de Pedras vivi pontas de sonhos imensuráveis, abstrações que nem a realidade (quase sempre dura como pedra) pode dissipar por completo; e fatos reais misturam-se ao mágico desabrochar do menino na terra querida dos seus avós. Ponta de Pedras sou eu e as pessoas a ponto de encontrá-la sempre menina, sempre princesa em memória de vida... Vejo-me ainda menino, lá no Cucuira, ouvindo os velhos chamá-la de Itaguari! “Dé onde tu vem? Dé Itaguari!” Velhos tempos em que passávamos o dia lá no terreno do finado Binga debulhando açaí e ouvindo casos sem fim.
           Lembro como lances fotográficos... Ao redor de mim, as coisas que faziam o coraçãozinho pular veemente por ter vontade de mais e mais viver. Viver as ruas, as casas, as gentes e suas histórias: viver-me!
          Uma vez, assustado, corri para minha avó: “Meu coração está batendo!“, aí vinha aquele sorriso cheio de bonomia, clareando o rosto bonachão, querendo me fazer entender que era normal : “ É porque tu tá vivo...”. As justificativas tornavam-se incisivas para que eu parasse de indagar e cada vez mais eu indagava: “Por quê?”.
          Minha ‘vozinha. Lembro-me dela fazendo pastilhas de coco para festinha do jardim de infância: “Professora Sônia vai adorar me ver vestido de quadrilha“, com aquele bigode de pó de carvão, “parecendo homenzinho já feito”, de chapéu de palha e calça enfeitados.
          O jardim... Meu primeiro amor. Funcionava lá onde é hoje o seminário dos padres. Quanta felicidade: brinquedos, o uniforme quadriculado, as festas infantis e a professora! Uma vez, meu irmão transferiu-se para minha classe com sua autoridade inocente de criança (queria também a mesma professora?). Não teve jeito: ficou transferido! Minha irmã acostumou-se com a dela; íamos os três, juntos, e voltávamos alegres, com a roupa suja do “escorrega-bundas”.
          Agora, com meus dezoito anos, lembro e comento do quanto minha cidadezinha mudou! As ruas perderam aquele segredo de levar-me aonde? E o boi do Mangote que fim levou? que não o vejo mais arrastando sua carroça na lida do dia-a-dia. As casas, algumas ainda possuem uns quês antigos do tempo querendo falar através delas; os comércios, as tabernas tinham jeito de começo de século, jeito e cheiro – ainda posso sentir a borracha, o pirarucu, a piranha salgada que vinha do Arari impregnando o ar lá na “Casa da Prosperidade” do senhor “Nemorino”: ele fazia questão de uma cuiona de mingau de milho branco lá da dona “Xixita”. Lembro-me vagamente de outras casas, com fachadas tipo colonial, com seus grandes nomes. Nomes que pareciam querer revelar um pouco de seus donos: “Casa da Beira” e o “Ponto Certo” – os práticos; “Casa Tavares” e “Farmácia Alencar”– os tradicionais; “Canto do Uirapuru” – os poéticos; “Casa Nossa Senhora da Conceição” – os devotos; “King Bar” e “Big Bar” – os modernos...
          Por detrás da “Casa Tavares”, os foguetes chiavam e ganhavam espaço, explodindo anúncios de folguedo e arraial, avisando os ribeirinhos do Marajó-açu em dias festivos. Ficava de longe. O estouro me amedrontava; mas acompanhava o trajeto dos rabos vindo mergulhar na água qual ave pescadora atrás do marisco.
          As canoas aportavam na rampa, cheias de utensílios artesanais: alguidar e potes, chapéu de palha e esteira, rosquinha e mel... “Compre um potinho de mel pra comer com farinha”; outras, com frutas: banana, pupunha, manga, bacuri, piquiá, cupuaçu e tantas mais que enchiam o ar de “marajoareidade” – como dizia meu tio na sua sabedoria interiorana. E ficava observando as canoas indo e vindo; no meu pensamento, eu as controlava; exceto a maior de todas: o “Raimundo Malato” – o “Barco da Linha”. Às vezes achava o rio pequeno demais para ele. Minha avó dizia que as coisas é que eram enormes para o meu olhar infantil.
          Lá no quintal... Tivemos vários quintais; em cada um havia um segredo que eu teimava em não descobrir para não “quebrar o encanto”, apenas vivia-os. Lá, imaginava o mesmo movimento no porto e na feira: os mesmos barquinhos (agora de papel) deslizando na água que escorria da torneira do banheiro ou da enxurrada que molhava todo o terreiro: “tun-tun-tun-tun-tun”. E eles encostavam ligeiros no trapiche imaginário dos meus sonhos.
          Moramos no lado do campo de futebol. O barulho das torcidas em dias de jogos enchia-me de um querer torcer também. Mas para quem? “Quem joga? Quem ganha?”; e me empurrava atrás dos maiores, mangueira acima. De lá se vivia a mesma euforia; no entanto, nunca consegui distinguir, daquele ângulo, quem era quem! “O que tu entende de time!?”. Sem falar do quanto eram perigosos aqueles galhos finos; mas o quê? Peraltices não vêem perigos...
          De manhãzinha lá ia eu comprar manteiga e pão no seu Raimundo "Prego". Ele: "Quanto?", e mostrando dinheiro: "Isso". Boas-tardes podiam ser ouvidas do “Jereba” que passava na rua com saco de cocos nas costas – “Boa tarde!”- mas eu corria... Ah, quanta saudade!
          Outra lembrança inesquecível: a “baiúca” do seu Joaquim. Quase todas as tardes (ou manhãs) lá estava eu com a palavra “Big-bol” na boca; e quando não tinha dinheiro, ele me entregava um. Talvez fosse por isso que sempre o achei com “cara de bom-velhinho”. Localizava-se onde hoje é a casa do Francisco Pereira; depois se mudou para frente do banco, debaixo de um jambeiro frondoso; agora é no “coretinho”, na mesma pracinha. Ainda vende bombons!
          Alguns raros domingos, minha tia nos levava (meus irmãos e eu) para a praia – era uma alegria só! Íamos de ônibus. Não sei se era dos famosos “ônibus do Cícero”; deveria ser, pois de lá pra cá nunca ouvi falar em tais com outras designações. Era uma maravilha! O vento soprando no rosto pela estrada, esvoaçando os cabelos finos que me caiam na testa. Deslumbrava-me com as árvores e os campos passando e nem sabia que quem passava era a gente. Praia de Mangabeira: os coqueiros, os ventos, as ondas, a areia, alguns botes passando ao longe, “lá forão” – como disse um colega uma vez. E brincava na água com o sol a pino. Às vezes subíamos e andávamos atrás de mangaba até certo ponto da estrada...
          Todas essas lembranças, as histórias e seus personagens reais, tudo motiva o encanto que por Ponta de Pedras sempre guardei; tudo me dá orgulho nessa terrinha, terrazinha que sempre amei.
(1º lugar no concurso litário de Ponta de Pedras)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Uma história de boto

“O boto é um animal manso e brincalhão”, exemplifica um dicionário. De fato, ouvi casos no interior onde trabalho que denotam puras fanfarrices desses cetáceos pregando peças na imaginação das pessoas.
E “...altamente inteligente”, diz outro dicionário. Que valha a história que se segue.
          O casal de namorados escolheu o trapiche da vila para efetivar o ato que todos comentavam que eles já tinham realizado. “Se há a fama, que haja o feito”.
          A noite não poderia estar melhor, propícia para a defloração da planta que se vê em véus: com aquele céu límpido, mas ainda sem estrelas. Um desejo secreto pulsava naquele momento. Do mar soprava uma brisa constante e refrescante. Nenhum barco, nenhum fumante dessas bandas dando uma de pescador para atrapalhar. A menina exalava um calor sensual, e já quase nua esperava pelo gesto instintivo do rapaz que lhe ganhara a feição. Foi quando um estouro de água perto da escada bem debaixo deles deixou escapar um “chuá” que fez o casal mostrarem o amarelo dos pés, interrompendo o ato. O comentário na vila foi de que um boto tinha desaprovado aquela união porque já era enamorado da moça.
          Zé Bira foi quem alimentou a história dias consecutivos. O povo aceitou a explicação, mas teve quem seguisse o fato de que Zé Bira fora antes rejeitado pela moça, que não o quis paquerar. Isso foi antes. Passaram-se anos.
          E essa história de um boto rondando a casa da menina à noite veio ganhando ares.
         A dita cuja, depois de aparecer grávida do namorado, foi morar com ele numa casola de paxiúba na beira do igarapé.. De fato o casal, logo depois do ocorrido naquela noite, não tardou a entrar na vida sexual que tanto desejavam. Tiveram uma linda filha que mais parecia uma irmã gêmea da mãe quando criança, diziam. Tudo se ia como se vai.
          E a vida se passava pacatamente quando a mulher começou a definhar: médico não deu jeito! A história do boto que a assombrou quando solteira veio à tona: “O boto está visitando sua mulher, homem” diziam os amigos. O homem armou uma para pegar esse boto. Emprestou a espingarda do primo de Zé Bira e fingiu ir lanternar, ficando à espreita. Chegou a ouvir algo suspeito na água do igarapé perto da casa; o homem preparou a espingarda, no entanto nada viu. Repetiu a infeliz artimanha por mais algumas vezes e chegou a conclusão de que sua mulher estava mesmo era doente: mas nem remédio de médico nem de mestre! Faziam-lhe tudo quanto era chá e banhos, nenhum efeito; e o imaginário coletivo concluiu que fora o boto quem malvadou dela.
          Ah, qual mistério se esconde por detrás da índole de tão famigerado bicho?

Outra de boto

O conto “Uma história de boto” foi publicado no informativo que a escola da região mantinha. Os pasquins espalharam-se nas comunidades feito epidemia de cartas de parentes queridos.
               Num dia, Manoel, filho de nove anos de Zédalo, chegou da escola e atirou os cadernos e livros sobre a mesa da cozinha. O jornalzinho voou para as mãos do pai. “Assim tu trata do material, Manduca?! Tenha zelo, menino!” O pai segurou a folha. “Saiu o de junho!” Leu. Leu tudo. Leu o conto do boto.
               Josédalo, caboclo trabalhador, tinha mania de ler; não perdia os informativos da escola de seu filho. Lia de tudo: poesias, contos, mesmo que deles, às vezes, pouco entendesse. Aliás, costumava dizer que o gosto pela leitura era herança do pai, homem – também caboclo – apaixonado por mitologia. O nome “Josédalo” surgiu da discussão entre seus finados pais: a mãe queria homenagear o patriarca da Sagrada Família e o pai, o artista mitológico das asas de cera; num átimo de cordialidade concordaram em dar-lhe o híbrido nome “Josédalo”, ou Zédalo, como ficou conhecido no interior onde sempre morou.
              Zédalo freqüentou escola até as séries iniciais; não havia mais escola para ele na região. Sair não podia. Era arrumar mulher e filhos e se atirar na luta do dia-a-dia: apanhar açaí, tirar lenha, fazer carvão, preparar roçado, caçar e pescar. Porém, fazia gosto que seus filhos, Manoel e Ofélia, estudassem e fossem além dele. Viridiana, sua esposa, que andava doente, mofina, também aplaudia aquele interesse pelo conhecimento que Zédalo sempre fez questão de alimentar.
               Mas Zédalo mudou depois de ler o conto do boto. Aquele conto lhe abrira os olhos?
               Quando conheceu sua esposa, via nela a vida que pulsava e nunca cansava porque queria sentir na alma a glória de estar no mundo depois de, quando criança, ter escapado de uma grave pneumonia. Há algum tempo ela começou a andar cabisbaixa, suspirando pelos cantos, mostrando uma tristeza repentina. Numa caçada, certa noite, Zédalo desabafara com seu amigo Rodugo. “Sua mulher pode estar mesmo doente, home! Leva ela no mestre Ziu.” O povo é que já comentava que o boto judiara dela. “O boto anda visitando tua casa, Zé!”, “Tua mulhé tá mundiada do bicho tinhoso!” Zédalo queria que fosse ao médico; ela adiava. Já tinha tomado garrafada de pajé. Até trabalho para o tal bicho das águas e da terra ir embora foi feito. Nada. Tinha que ir ao médico!
               Um mês depois disso, Viridiana disse que estava grávida. Seria uma festa. O Zé sempre festejou o nascimento de um filho. Convidava o pessoal e armava a “mucura”; a maior peixada e camarão assado com açaí eram os tira-gostos da pinga de Abaeté – cachaça doce e apimentada! Mas dessa vez não. Da queda que sofrera de um açaizeiro, Zé conseguira manter a virilidade, mas não mais engravidaria sua esposa, conforme disse o médico. Só ele carregou o peso dessa notícia. Viridiana não ficou sabendo da esterilidade. Zédalo se conformou com os dois guris que já tinha.
               Todavia, a mulher ficou de barriga. Milagre! Não, não fizera nenhum pedido aos santos nesse sentido. Mas Viridiana grávida! Enganara-se o doutor comigo; serei pai de novo. Mas, os tais deferentes rompidos. Sentia-se, nas palavras de seu próprio pensamento, “capado”. A companheira ignorava o fato. Ela poderia desejar ter mais filhos...
               Viridiana mostrava traços arredios de maternidade lassa; a palidez desquarava o semblante outrora moreno e cheio de luz; a titinga deu sinal abaixo das orelhas e o brilho jovial da pele macia ofuscara-se – nuvens descontínuas amorteceram a estrela do dia.
               "O boto, home, anda visitando tua casa!”. As palavras das gentes tiniam na vontade de Zé. Tiniam agora insinuantes, porque até então aquela história do boto era choça para ele.
               Mais depois de ler o tal conto do boto no informativo, Zédalo mudou mesmo. Atinou para as freqüentes visitas que Rodugo ultimamente lhe fazia. Aparecia, principalmente, nas ausências do caboclo. Um pensamento de traição lhe assolava o corpo e a mente. Talvez não quisesse pensar assim. Infâmia. Traição. Rodugo e ele foram criados quase juntos. Não podia. Porém a raiva crescia no peito de Zédalo, o tórax estufava-se e comprimia-se, mandando rajadas de fúrias que fervilhavam nas veias e dirigiam-se frementes ao cérebro: “Rodugo era o boto filho da mãe!”.
               O homem, agora transformado, mudou o semblante, deixou o informativo sobre a mesa e, dirigindo-se ao igarapé na frente da casa, pulou em suas águas frias. Conteve por hora sua febre. Parou, pensou, decidiu...
               Disse à mulher que à noite iria lanternar; já tinha convidado Rodugo. “Vou caçar nem que seja um boto”, pensou, “Mato esse desgraçado”. Viridiana queixara-se como que temendo algo. Não teve jeito, à noite ele foi ao encontro do amigo.
               No meio do matão, Zé se volta (parecia controlado) para Rodugo que defende, com a mão esquerda, os olhos da luz da lanterna de Zé, que o encandeou.
               _Há quanto tempo tu me trai? Há quanto tempo, Dugo?
               Não esperou resposta. O aparente controle explodiu com o estampido da arma que crivou Rodugo com chumbos.
               _Ande, home, fale!
               Rodugo, cambaleante, se atira nos braços do amigo, movendo a cabeça para os dois lados. E morre.
               Zédalo nunca esqueceu o movimento da cabeça de Rodugo. “Queria dizer que não era verdade a acusação?”. Essa imagem o perseguia agora.
               Os parentes do morto conformaram-se. “Fora acidente”. “Fatalidade”. “Acontece”.
               Meses depois, Viridiana, sentindo dores, desatinada, jogou-se nas águas frias do rio Crairu. Deu à luz uma criatura horrenda. Contam meio cobra, meio peixe. “Feto mal-formado”, disse o enfermeiro do local. “Filho de boto”, comentou a veterana parteira.
               E Zédalo? Ele não parou mais de lanternar. Até hoje convida seu amigo Rodugo; e nunca chega com caça alguma.