Escrito...

A minha literatura diz e não diz: diz porque, no momento de aspersão inspiradora, (quase) se nota uma fisgada de incomodidade, uma crítica sutil, para que a poesia floresça... Não diz porque as inquietações são dialéticas - parte de cada leitor -, o que se vive, sonha, pensa e sente...

domingo, 30 de agosto de 2009

O avião do dinheiro



_ Chegou o avião, Zeca. Hoje sai dinheiro.
          A turista que ouviu o comentário de dois amigos que conversavam ficou meio sem entender. O avião que acabava de pousar era para levá-la a Belém. Ponta de Pedras, permita que eu explique, entrou na rota do turismo. Vem gente de tudo quanto é parte. Até estrangeiro. Antes nos deparávamos só com italianos por conta dos padres. E quem tem visão é que se dá bem; quem tem visão e dinheiro. Uma boa pousada, um bom restaurante, sorvete com sabores “exóticos”, um bom táxi,... Eu tenho visão.
          Mas a turista a que me referi era uma professora-pesquisadora da universidade. Veio conhecer a terra de tantos ‘causos’; a terra que até escritor famoso agora tem, graças às investidas de estudantes e pesquisadores universitários para o reconhecimento do nome Dalcídio. O colégio novo tem o nome dele. Já não era sem tempo!
          _ Não era o avião, Zeca.
          _Devia ser um avião pra levar doente, Dico.
          Voltemos à professora. Ela pediu que seu aluno, e anfitrião, lhe explicasse essa do avião. Ficou sabendo que, em dias de pagamento do funcionalismo da rede municipal, todos tinham a certeza do dinheiro quando o avião atravessava a cidade, sobrevoando baixo em pouso. Fora isso, táxi aéreo na cidade? Só quando tem doente grave ou outros casos raros.
          _ Só desceu um, até agora, Dico. E nesse não veio.
          _ Só ouvi um também.
          Ih, eu nem me apresentei. Sou o taxista Mansão, o que conduziu a professora-turista ao campo de aviação. Veja só! Ponta de Pedras tem táxi. Está evoluindo. Claro que as corridas acontecem nas chegadas dos barcos e em chamadas como aquela da professora. O dinheiro quando entra traz progresso. Todos ganham?! Vale lembrar que para muitos esse progresso vem devagarzinho ou acaba nem vindo. Fruto de uma herança histórica. Quais as perspectivas de uma cidadezinha que cresce quase desordenadamente? “Meu filho precisa estudar; vamos morar na cidade!”, argumenta a cabocla que diz ter um terreno dentro de não sei que mato no Armazém, no Carnapijó, na rua Belém, ou na Lagoa Azul.
          Lembro-me da professora sugerindo ao seu aluno até que fizesse uma pesquisa sobre esses “peculiares” fatos populares do município. Não sei que peste de ‘examinação’ fez aquele garoto da dona Giloca que agora está metido a doutor. Quem não o conhecia chopeiro nos portões das escolas? Teve tino e estudou o menino.
          _ Avião, Zeca!
          _ Agora é, Dico.
         Uma outra vez, dia de pagamento também, os funcionários se alvoroçaram com o barulho de um teco-teco. Os comerciantes esfregavam as mãos gritando “Opa!” e davam tapinhas nas costas de seus auxiliares. Nas janelas e portas, nas repartições, ouviam-se “Desceu o avião”, “Sai à tarde” etc.
          _ Não era, Zeca.
          _ Era bem pra levar doente, de novo. É andaço que tá dando muito. O filhinho do Tião quase não volta.
          Pois é, tem dessas. Médico não deu jeito aqui? Belém, então. Muitas vezes o doente volta morto, e de lancha.
          Para inteirar, nesse dia desceu mais um avião, o terceiro.
          _ Te apronta, Dico. Agora é.
          _Só pode ser, agora!
         Era dinheiro sim, mas para o correio que fazia pagamento aos aposentados. A fila alcançava a esquina. Pensar que já tivemos dois bancos. Certas pessoas dizem que nossa terra é a “terra-do-já-teve”. Será que a borracha que chegava à Casa da Beira, ao Nemorino ou ao seu Paulino deixou tanta falta assim? Agora tanta coisa para construir e reconstruir! Erário pouco. Diminuiu emprego de cabide. Tem que fazer concurso! E quem tem precisa gerar!
          Funcionários que chegavam da zona rural perguntavam se havia saído dinheiro. Da esquina do mercado municipal fulano gritava “Não, só amanhã”.
          Dito e feito. Pela manhã todos estavam recebendo...
         _ Mas hoje não ouvi nenhum avião, Zeca.
         _ Nem eu, Dico. Nos de ontem não veio nada!
          O avião do dinheiro, desta vez, veio de barco.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O homem que falava só

_ Estranho...
_ Estranhíssimo!
Em tempos tão modernos, é de se estranhar que exista alguém que viva isolado e envolto em mistérios. Mas lá para as bandas da comunidade de Santa Maria, Ponta de Pedras, um homem já idoso, magro, morando em uma palhoça, sozinho, desperta mirabolantes fantasias na imaginação do povo daquela região.
          Ele sai às 6h da manhã para o roçado; leva apenas uma latinha bem tampada e uma garrafa de água. Há quem diga que ele tem um olhar sofrido, misterioso e uma voz assim... zinha, de criança. Veste-se quase sempre com uma calça marrom, uma camisa de mangas compridas quadriculada e um chapéu de palha... Tudo bem usado, exceto as botas pretas que luzem com o sol. Volta quase sempre às 15h, cansado, porém disposto a fazer as coisas do lar.
          Naquele lugar, quase ermo, de frente para a baía de Marajó, seu Vico à natureza parece que pertence.
          Sempre calado; quando encontra alguém na mata, continua calado; um aceno de cabeça, olhos baixos: muito sutil o seu cumprimento. E assim o definem como algo ímpar, o descrevem às vezes com poderes sobrenaturais.
          _ Anormal...
          _ Anormalíssimo!
          Transmuta-se em bicho ou em toco de árvores, em sopro de vento ou pedra na beira do caminho... Mas sua maior fama é a de que ele fala só. Dizem que ele conversa com os espíritos de povos que por lá viveram, ou com os seres habitantes do matão.
          _ Espantoso...
          _ Espantosíssimo!
          “Uma gente cabocla, esquecida”, talvez seja o pensar dos náuticos quando avistam aquela palhoça habitando o lugar, com coqueiros dos lados, curvados em proteção a ela. Um morar cor de madeira e areia, céu e mar, onde os ventos chiam melancólicos como o andar daquele homem procurando, às vezes, o que na praia. Como se alimenta? Farinha, caça, pesca e frutas. Um índio matreiro que come mucura e cobra. Sua farmácia vem da própria terra: ar, água e fogo, alquimia interiorana na efusão de folhas e raízes para os males do corpo e da alma. E uma lenda se formou nas ilhargas do caboclo...
          _ Assustoso...
          _ Assustosíssimo!
          As estações passam e o ciclo anual se completa em um dado dia do outono com um festejo, seu aniversário talvez... Contemplam-se revoadas repentinas e cantos de bichos no fundo da floresta; é um arfar de viração mole, distante de quaisquer memórias, um mormaço telúrico investindo nas lembranças de outrora daquelas paragens; são as águas da baía ondulando e assinalando com suas pálpebras brancas acenos ritualísticos; folhas chacoalham nas árvores. Todo ano, diferente e igual. Na vizinhança o fenômeno chega difuso e longínquo, e a velharada sabida atiça o mito do feiticeiro que fala só. “Mais um ano de vida!”.
          Enfim...
          Vai que um dia, dois jovens amigos, um de Crairu e outro de Santana, de tanto ouvir as abusões sobre tal homem, como prova de coragem, foram averiguar aquele traçado no mato por onde ninguém ousava andar... Chegaram à palhoça antes da saída costumeira do dito ser. Sentiram um arrepio ao observar, quietos, à distância, aquela habitação que parecia inócua, mas que causava uma espécie de curioso alumbramento. Uma quase calmaria; a vista da praia era bonita naquele amanhecer, instigando bravuras.
          Os amigos se aproximaram, e o clima ameno se converteu nas mentes deles: uma palmeira acenou em reprovação, uma nuvem azulada surgiu, um canto lúgubre se ouvia ao longe. Uma voz quase infantil; o homem que falava só falava numa conversa tão natural com quem? Risadas, admiração, conselho... Era uma vozinha esperta. As palavras, porém, pouco inteligíveis se traduziam em pausas, ritmos, gradações..., cujos significados para os corajosos bisbilhoteiros eram os mais diversos. Num acento de covardia, os dois já partiam em fuga... Pararam! Deveriam voltar e desvendar aquele mistério de uma vez por todas! Ainda que receosos, voltaram. O homem, que falava só, ria... grunhia... ralhava... falava...
          E os dois, na espreita, esperaram o velho sair. Saiu um homenzinho sagico e moreno com uma latinha e uma garrafa. Os vigilantes se aproximaram por trás: no quintal, um poço sem cerca de proteção, alguns baldes de zinco e cuias ao lado; estendida num varal uma tarrafa; tudo rodeado por coqueiros novos. Sarapatados, os dois entraram: um fogareiro à lenha, uma caneca e duas panelas de alumínio penduradas por um cipó seco; um pote e um alguidar de barro a um canto. Uma parede de miriti separava a cozinha de uma espécie de quarto-sala. Nesse cômodo meio escuro, em outra parede, se podia ver uma fotografia amarelada cujo casal se assenta em cerimônia para a pose numa vigília eterna. Havia lá uma mesinha rústica bem talhada, um banco de madeira carcomida, uma rede de dormir pendurada no esteio do canto direito e, no canto esquerdo, uma prateleira escura... de onde vinha uma luzinha verde intermitente... Debaixo dela, num caixote, uma bateria grande de carro.
          Os aventureiros se aproximaram cuidadosos. Um trinado. Que susto!
Vararam uma janelota e mostraram o amarelo dos pés pela trilha da vinda, mata adentro. A natureza ria largamente enquanto o trino imitava a melodia de uma ave canora.
          _ Notável...
          _ Notabilíssimo!
by Jonas Furtado (6º lugar na II Amostra Literária do Governo do Estado)

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Biblioteca azul



Uma biblioteca. Isso o que todos devíamos ter. Alexandria me entristece; a Idade Média me entristece. Nossa prefeitura - guardava uma - já teve seu Nero. Tivesse como, teria uma biblioteca inteirinha, inteirinha: todas as ideias dos tempos, todo o pensamento do mundo! Uma biblioteca inteirinha satisfaria meu gosto. Livros por toda a vida que Deus me desse...!

Uma biblioteca... Mas onde a alojaria? Minha casa é pequena, pequena demais: uma salinha, um quartinho e uma cozinha; não daria... Casinha de madeira; vez por outra dava cupim. E uma biblioteca! Livros chamam cupins; sozinho não os venceria.

Sabe, uma casa pequena assim, cupinzável, não serviria mesmo. Ou poderia...? Uma biblioteca inteirinha, toda azul. Como? Só na minha cabeça! Ah, só na minha cabeça infantil caberia. Deus me desse tanta vida, caberia... Talvez me metamorfoseasse em cupim, um cupim azul... Nos anos 80 e 90, azul era minha cor predileta. Meu prato azul, meu copo azul, e a escola, e a roupa, e a mente... Um cupim azul. Leria como os cupins: seria inteligentíssimo. Um por um e, depois diria “Devorarei mais um”. Sempre mais um, até a biblioteca inteira... Mas uma biblioteca em casa? Não dá. Só na minha cabeça de 9 anos...

O tio era um tudo. E às vezes, carpinteiro; às vezes marceneiro. Dos dois um tudo! Biblioteca! As caixas de fruta da feira... Ele desmantelava, martelava, cortava e remartelava: prateleiras, suportes... Prateleiras eram para pratos como sapateiras para sapatos? A casinha ganhava era uma estante, a estante lembra livros. Eu ficava martelando aquilo. Biblioteca? Uma infinita! Só na minha cabeça...

Um dia acordei bem no meio do meu aniversário. Bolo? Refrigerantes? Balões? Havia era um livro grande e grosso em uma das prateleiras da estante, agora azul de cal e xadrez. Enciclopédia. O que é uma enciclopédia? Um volume apenas. Um volume de segunda feira na estante azul, que era a minha cor, azul-celeste. Estante celeste... E se há uma coisa que tem no céu é biblioteca com infinitas estantes azuis.

Avancei para cima do livrão – cupim esfaimado... Capa dura, miolo de branco-usado e conhecimentos azuis. Ali toda uma... infinita que não acabava mais!

(Biblioteca azul de J. Furtado – inédito)