Escrito...

A minha literatura diz e não diz: diz porque, no momento de aspersão inspiradora, (quase) se nota uma fisgada de incomodidade, uma crítica sutil, para que a poesia floresça... Não diz porque as inquietações são dialéticas - parte de cada leitor -, o que se vive, sonha, pensa e sente...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Tulê

Tipo folclórico aquele garoto que nos acompanhava nas aventuras pelas matas de Santana, de Tartarugueiro ou de Crairu. Muito contador de mentiras, diziam. Dava uma resposta simuladora, dissimulada, assim... de sério rosto e com a voz alta (mas sem grito), fazendo misuras com o rosto e com as mãos.
Sua primeira façanha surgiu quando teria uns 10 anos.
Jacaré era a alcunha de um dos maiores apanhadores de açaí das redondezas. Certa noite, Tulê ouviu meio de relance os velhos gabando-se do homem ligeiro das palmeiras. No dia seguinte, vindo do mato, o pequeno jurou ter visto um jacaré subido no açaizeiro. A mãe dele, contando o caso, suspirava: “Só o Tulê mesmo com essas histórias”. A próxima dele foi ter sido perseguido por um pé-grande quando colhia bacuri perto do cemitério de Santana: “Eu vi sim!” – terminou ele fazendo bico com a boca.
Outra vez, Balado, Tirico, Aparecido e eu resolvemos brincar com ele. Inventamos uma certa boiada que tinha surgido pelas redondezas.
_Tulê, viste então os bois passarem por aqui? – indagou o Tirico com jeito de quem tinha por dentro uma certeza da resposta.
_ Estão todos lá na beira do rio bebendo água, acabei de vir de lá.
As risadas admiradas jorraram de tamanha cara de pau do garoto.
Hoje, atento para as pequenas recordações, concluo que o pequeno mentiroso na verdade era um sonhador, um vislumbrado desse mundo que preferia enfeitar tudo com fantasias, demonstrando assim uma poesia latente.
Difícil compreender o ocorrido com ele depois daqueles dias, daqueles anos felizes. Melhor mesmo nem contar.

Nascido na cidade

Eu, com meus nove anos, certa vez li na minha certidão de nascimento: “nascido a 17 de julho... na cidade de Santana do Arari”. Foi um orgulho essa descoberta; passei a ser menino de cidade e não de vila, de comunidade. Era diferente então dos meninos do Tartarugueiro, do Crairu, de Santa Maria, de Porto Santo, porque eu nasci numa cidade, e eles pertenciam as suas comunidades. Comunidades de Santana do Arari.
          Quando íamos brincar de bola no Tartarugueiro, na verdade sentia-me num sítio de Santana. Nada diferente. Mas eu imaginava uma distinção entre a minha cidade e seus interiores. Em alguma disputa mais acirrada, poderia me valer do brio de ser de cidade e eles não, e queria jogar essa na cara dos meninos das comunidades vizinhas, mas sempre amolecia e expulsava essa vontade da minha mente. Algumas pessoas diziam que eu parecia com o finado Rildo; ele é lembrado como um rapaz justo e generoso. Morreu jovem - acidente num jogo de futebol.
Só com dez anos e meio descobri que o homem do cartório em Belém, onde minha mãe me registrou, se enganou.
          _Não, o Ediberto Filho não nasceu aqui, seu moço, ele nasceu foi em Santana do Arari mesmo.
E o “seu moço” (porque será que penso no homem do cartório como um ser burocrático, metido a doutorzinho de meia tigela?) assentou “cidade”. Tinha era que ter estudado como eu estudo, o velho. Ou que perguntasse, pesquisasse. Ainda ouço reclamações de pais de alguns amigos meus que o escrevente tinha errado a grafia dos nomes deles. Eles levavam o nome anotado para o carrancudo não cometer “lapsos”. Isso de nome é muito íntimo das famílias. Trata-se de nossa primeira documentação, o comprovante de nossa existência social. Quem não gosta do nome quer trocar. Ainda bem que o meu é o de meu pai. Não troco.
          Pois sim. E o homem sério atrás da máquina datilográfica, em sua praticante ignorância, me deu um ano e seis meses de menino de urbe.
          Depois, fui mesmo aceitando o fato. Santana é só uma vila, uma comunidade do município de Ponta de Pedras. Aliviava-me por não ter debochado dos meninos do Tartarugueiro.
          Antes da chegada dos professores para implantação do Ensino Fundamental, parecia que mais pertencíamos à Cachoeira do Arari, pelas paradas dos barcos no trapiche aguardando a maré, pelo rio Arari... A cuidar, muita gente nossa daqui nasceu em Cachoeira. Porque tinha parente, porque o padre convidou, porque tinha uma nesga de terra acolá para casamento com filho ou filha do lugar. Minha mãe nasceu em Ponta de Pedras, na cidade mesmo. E meu pai era cachoeirense dali do Caracará. Ele veio numa festa do círio de Santa Ana e botou olhos naquela negra arredia. “Pôs olho em mim e não foi fácil!”, gabava-se ela. Acabou cedendo aos galanteios do jovem Ediberto Silva. Ah, isso quase dá fuzuê. Minha mãe tinha outro pretendente, dizia...
          Já eu nasci aqui na comunidade. A dona Joana, parteira velha, foi chamada à boca da noite para ver se eu nascia. “Nasce, sim!”, garantia ela na sua exclamação de sempre sentir a vida uma maravilha única. E era. Mas na dúvida, papai arranjou embarcação para levar dona Marica para Cachoeira. Nem foi preciso; nasci ali mesmo em casa, pelas mãos da velha parteira.
          _Não disse?! Homem!
          Então, essa de me orgulhar de minha cidade, a maré levou, o vento soprou para os recantos da lembrança quase esquecida. Acho que foi um sentimento de frustração o que senti depois.
Mas, à medida que eu aprendo e cresço, minha imaginação quer me levar para muitos lugares, outras cidades; e eu vou, ainda que sem sair de Santana.